Sim, amava-a, com um amor que não era o de estar “preso por vontade”, era apenas de vivê-lo tão livre quanto desejasse, para ser solto foi que ele nasceu, era um boêmio como aquela cidade jamais conhecera. Rosália era o sol que o iluminava de dia, mas à noite era na companhia de bêbados e prostitutas que ele se sentia bem a gosto. Por esse motivo e questões de raça, conquistara Inácio, o desafeto do seu sogro.
— Isso é um caboclo safado, é um vagabundo, minha filha não carece de passar por tamanha desgraça, vamos desmanchando esse namoro! — Dizia seu Augusto.
Para a tristeza de Rosália os homens mais importantes de sua vida se odiavam, ambos trocavam insultos pelas costas sem jamais ter havido um confronto cara a cara. Entretanto, por uma dessas razões que explicam tudo, mas se prefere ocultar, deu-se o casamento entre flores de laranjeira e chuva de arroz. Dona Firmina, contagiada pelo romantismo de Rosália, nem ligava que a filha casasse naquele “estado”. O pai fez-se de conformado, e realizaram tudo segredando os verdadeiros fins que o fizeram engolir seu orgulho.
Imaginava seu pai que o destino ao lado daquele homem sem eira nem beira seria difícil, ofereceu-lhes uma casa na fazenda perto da dele e algumas criações, presente recusado por Inácio. Ele ia mostrar que era um homem de respeito e que não precisava de esmolas do sogro, foram viver num casebre que pertencera a um tio-avô de Inácio. Que ele amava Rosália, disso ninguém duvidava, mas que esse casamento também tinha um gosto de afronta era de se esperar. Enfim, aquele velho teria que aceitar um caboclo na família, casado com a alva Rosália. Após a lua de mel, não demorou para que a esposa conhecesse a mais pura lua de fel, as noites eram amargas, a barriga crescia-lhe sempre carente de um afago do esposo. Inácio voltava pra casa às madrugadas, cheirando a álcool e a perfume barato. Rosália não protestava, apenas se recolhia a algum canto a chorar e depois o cobria de beijos pra ver se ganhava algum mimo.
O nascimento do pequeno Inácio foi uma guerra: Rosália quase não resistiu à dor, fez força, grunhiu, rezou e mais força... Depois de tanta peleja, chorou para a vida o fruto do seu amor com o marido, o confronto deu-se logo depois de se saber o sexo do bebê, o avô e o pai queriam decidir o nome da criança, até que Inácio, quem era o responsável pelo registro, foi ao cartório e registrou à sua maneira, deu-lhe seu nome, o seu filho varão, seu orgulho, mais uma afronta ao sogro...
Inácio continuava na mesma vida boêmia de solteiro, andava mais na rua que em casa, seu filho crescendo e ele cada vez mais ausente. Rosália nunca se queixava, o medo de perdê-lo superava qualquer dor. Até que chegou o dia em que sem motivo algum, sem nunca ouvir uma reclamação da esposa, Inácio cansara-se daquela vida simétrica, daquele sofrer mudo da esposa, de si mesmo... Dera-lhe a desculpa de que ia a São Paulo em busca de um emprego para dar uma vida melhor à família.
As mãos dela, insatisfeitas, esboçavam um “tchau”, para Inácio, apenas um eufemismo do inevitável “adeus”.
O seu menino, que mal chegava à altura da coxa, seria seu porto, seu patuá da sorte que traria o pai de volta. Ele voltaria, queria acreditar nisso como se dessa crença dependesse o sentido para continuar respirando. Queria chorar, jogar-se aos pés dele, implorar-lhe que não fosse, que não a abandonasse, mas sabia: seria inútil. Inácio, implacável, a afastaria de si, detestava os dramas. Ele não lançou nenhum olhar para trás. Ela o seguia com seus olhos lacrimosos, até aquela silhueta desaparecer de vez no nevoeiro da madrugada.
Os dias corriam a galopes com espora, dizem que o tempo alivia tudo, não seria assim com Rosália, o tempo a trazia como escrava, sempre a esperar. Inácio filho, o Cissinho, era um bom moço dado aos estudos e tudo quanto tomasse gosto (essa era a única parte que lhe tocava parecer com a mãe). Cansara-se de ouvir: “Eu olho para você e vejo seu pai”, “você é igualzinho ao seu pai” — tão constantes nos lábios de sua mãe.
Tendo Cissinho completado os 18 anos, e já concluído o ensino médio, seus sonhos o fazia acreditar que já não cabia naquela cidadezinha, queria aventurar-se na cidade grande, fazer faculdade de direito, como era sonhado por todos os rapazes de então. Rosália só soube quando já estavam decididos os planos que o filho há muito acalentava dentro de si. Prometeu-lhe o filho, vir visitá-la sempre. Dessa vez, Rosália não resistiu e chorou, avistar a partida do filho era reviver a do marido, dois golpes a vida lhe dera, outra vez não implorou que ficasse. Era mulher de resignar-se, era de aceitar e guardar seus sentimentos da forma mais firme que pudesse.
Às madrugadas um vulto vagava na penumbra, antes mesmo que o primeiro galo cantasse, e fazia o café, e punha-o à mesa. Os vizinhos começavam a perceber conversas na casa de Rosália, mas só escutavam a voz dela. Certa feita, alguém que espiava pela janela assistiu a cena: Estava sentada à mesa, à direita da cabeceira, e servia o café a uma xícara da cabeceira, depois perguntava ao ocupante imaginário se queria mais açúcar. A notícia se espalhou e chegou aos ouvidos preocupados de seus familiares, que foram em comboio averiguar o caso e tomar as providências cabíveis.
As mãos dela, insatisfeitas, esboçavam um “tchau”, para Inácio, apenas um eufemismo do inevitável “adeus”.
O seu menino, que mal chegava à altura da coxa, seria seu porto, seu patuá da sorte que traria o pai de volta. Ele voltaria, queria acreditar nisso como se dessa crença dependesse o sentido para continuar respirando. Queria chorar, jogar-se aos pés dele, implorar-lhe que não fosse, que não a abandonasse, mas sabia: seria inútil. Inácio, implacável, a afastaria de si, detestava os dramas. Ele não lançou nenhum olhar para trás. Ela o seguia com seus olhos lacrimosos, até aquela silhueta desaparecer de vez no nevoeiro da madrugada.
Os dias corriam a galopes com espora, dizem que o tempo alivia tudo, não seria assim com Rosália, o tempo a trazia como escrava, sempre a esperar. Inácio filho, o Cissinho, era um bom moço dado aos estudos e tudo quanto tomasse gosto (essa era a única parte que lhe tocava parecer com a mãe). Cansara-se de ouvir: “Eu olho para você e vejo seu pai”, “você é igualzinho ao seu pai” — tão constantes nos lábios de sua mãe.
Tendo Cissinho completado os 18 anos, e já concluído o ensino médio, seus sonhos o fazia acreditar que já não cabia naquela cidadezinha, queria aventurar-se na cidade grande, fazer faculdade de direito, como era sonhado por todos os rapazes de então. Rosália só soube quando já estavam decididos os planos que o filho há muito acalentava dentro de si. Prometeu-lhe o filho, vir visitá-la sempre. Dessa vez, Rosália não resistiu e chorou, avistar a partida do filho era reviver a do marido, dois golpes a vida lhe dera, outra vez não implorou que ficasse. Era mulher de resignar-se, era de aceitar e guardar seus sentimentos da forma mais firme que pudesse.
Às madrugadas um vulto vagava na penumbra, antes mesmo que o primeiro galo cantasse, e fazia o café, e punha-o à mesa. Os vizinhos começavam a perceber conversas na casa de Rosália, mas só escutavam a voz dela. Certa feita, alguém que espiava pela janela assistiu a cena: Estava sentada à mesa, à direita da cabeceira, e servia o café a uma xícara da cabeceira, depois perguntava ao ocupante imaginário se queria mais açúcar. A notícia se espalhou e chegou aos ouvidos preocupados de seus familiares, que foram em comboio averiguar o caso e tomar as providências cabíveis.
— Rosália, olhe pra mim, sou seu pai.
— Ora, meu pai, e eu então me esqueci do senhor? Me dê cá a benção. — e falou com tanta ternura e sorrindo serena que desarmou a todos.
Depois de algumas conversas, enfim, o pai diagnosticou que não ela não estava louca, não de todo como se pensava, era apenas chamar-lhe ao conselho.
— Rosália, minha filha, estou sabendo... — começou seu Augusto, muito aflito e afetivo, mas ela não o deixou prosseguir.
— Desculpe, meu pai, me casei sem a sua aprovação, tenho um marido que não lhe agrada, mas antes as vontades do meu coração de que a obediência ao senhor. Não importuno a ninguém, só lhes peço que me deixem viver em paz com minha família.
Os parentes se entreolharam, havia uma melancolia eufórica no seu semblante, como se sofrer por aquele amor fosse mais doce que aceitar que ele não mais existisse.
Passaram-se mais uns dias, e desde aquela visita cada passo de Rosália era vigiado. O pai já não agüentava tanto penar, decidido, foi ter uma outra conversa com sua filha, aproximou-se da casa e lá estava ela plantada na janela, com um sorriso débil, meio pálida e úmida na face. Dessa vez as palavras do pai seriam mais duras, não queria poupar-lhe mais, era acabar com isso logo, libertá-la desse fantasma. Falou-lhe autoritário, querendo descortinar-lhe o olhar do véu da ilusão. Ela apenas entoava uma cantiga como as que cantava para seu filho no berço. O pai, nervoso, a sacudia impaciente pelos pulsos, o olhar de Rosália já não estava ali, não via aquelas caras tão penosas, não via seus pais desesperados, alguém lhe tocou a testa, fervia em febre. Desde esse momento não saiu mais da cama, a cada suspiro definhava chamando Inácio. Os olhos pregados no teto pareciam visualizar um filme, olhos de um azul-anil pareciam querer se encontrar com o céu, o tempo se arrastava, suava frio, respirava Inácio, não agüentava gritar, apenas sussurrava.
— Calma, Rosália! Já foram chamar teu filho... — Dona Firmina confortava a filha.
— Inácio, traz nosso filho, Inácio, veja como cresceu. Parece você Inácio! — Delirava Rosália. Chamaram um médico e um padre, um cuidaria do corpo o outro da alma. O médico receitou um antitérmico e o padre deu a extrema unção.
Enfim, dormia tranqüila. Entre as névoas vinha Inácio. Ela à varanda, o mesmo vestido de quando se despediram. Ia encontrar o repouso no seu abraço...
— Mãe, minha mãe! — Cissinho despertou-a adiando aquele sonho idílico. Ela muito lânguida abriu os olhos e sorriu, embora cansada, mais lúcida que antes. A presença do filho chamava-lhe à razão.
— Meu filho — falou a Cissinho num fiozinho de voz, vinda lá do nevoeiro, do fundo daquele sonho. — Vá chamar seu pai, vá, meu filho. É a única coisa que lhe peço, é meu único e último desejo, não posso ir sem vê-lo.
Quanta angústia, quanta responsabilidade para Cissinho, conseguiria ele encontrar o pai que há tantos anos os tinha abandonado? Onde andaria o velho? Será que viria? Chegaria antes de sua pobre mãe dar o derradeiro suspiro? Sem afastar de si as dúvidas, pôs-se a procurar por aquele pai desalmado, que há tantos não o via. Estaria o velho ainda vivo?
Cissinho foi à capital em busca de seus laços paternos, encontrou uma tia, ainda morava na mesma rua depois da caixa d’água. Depois de contar-lhe as causas e os efeitos da sua visita, a tia dando um par de exclamações lastimosas dirigiu-se ao telefone. Discou o número do seu irmão, contou-lhe tudo quanto soubera de Cissinho, Inácio pouco se abalou, a irmã passou o aparelho ao sobrinho. Cissinho, estudante de Direito, era seu grande momento, tinha de convencer o pai a visitar a esposa: Apelou para o amor que um dia os uniu, logo passou ao remorso e como esse não desse resultado, foi pelo caminho da compaixão. Apenas conseguiu arrancar um “vou ver o que posso fazer aqui...”. Cissinho era bom em oratória, mas, para imprimir sentimentos em alguém tão frio, fugiam-lhe os dons. Deu-se por vencido, voltava desconsolado, um fracasso duplo: falhara como o futuro promotor que desejava ser, não conseguira persuadir seu próprio pai, falhara na missão de satisfazer o último desejo da mãe.
Anoitecia, Cissinho estacionava o carro emprestado do avô e lhe vinham flashbacks da infância, sua mãe dizendo-lhe: “Você é igualzinho ao seu pai”. Saíram ao seu encontro o avô materno e outros parentes. Cissinho balançou a cabeça derrotado. Mas, subitamente, brilhou-lhe uma idéia, nascida das pequenas recordações, pediu que ficassem lá com ela e se perguntasse por Inácio que ele estava chegando. Sem entender muito bem, fizeram o que pediu Cissinho. Este por sua vez, voltou ao carro pegou uma maleta e dirigiu-se ao banheiro dos fundos demorando-se lá alguns minutos.
Anoitecia, Cissinho estacionava o carro emprestado do avô e lhe vinham flashbacks da infância, sua mãe dizendo-lhe: “Você é igualzinho ao seu pai”. Saíram ao seu encontro o avô materno e outros parentes. Cissinho balançou a cabeça derrotado. Mas, subitamente, brilhou-lhe uma idéia, nascida das pequenas recordações, pediu que ficassem lá com ela e se perguntasse por Inácio que ele estava chegando. Sem entender muito bem, fizeram o que pediu Cissinho. Este por sua vez, voltou ao carro pegou uma maleta e dirigiu-se ao banheiro dos fundos demorando-se lá alguns minutos.
Pouco depois todos os olhares convergiam para aquela figura que se assomava à porta, todos boquiabertos, não viam naquele rapaz de terno cinza senão o Inácio pai, quando jovem.
— Inácio, Inácio... — insistente, chamava-o Rosália , em seu flagelo.
— Estou aqui — Cissinho se aproximou do leito, agarrou-lhe a mão esquerda e beijou-lhe a testa. Era ele, o seu Inácio, na imagem turva que conseguia ter, era aquela mesma imagem, Inácio entre as névoas, meio sério, terno cinza, ele voltou!
Rosália nunca foi dessas moças cujo sorriso se alargava pelo rosto, seu riso era sempre pela metade, como se economizasse a felicidade — seus olhos orvalhados fecharam-se lentamente na medida em que seus lábios sorriam para o infinito.
Rosália nunca foi dessas moças cujo sorriso se alargava pelo rosto, seu riso era sempre pela metade, como se economizasse a felicidade — seus olhos orvalhados fecharam-se lentamente na medida em que seus lábios sorriam para o infinito.
OLIVEIRA, Ivana P. L. de, O Derradeiro Desejo in Antologia Bahia de Todas as Letras, Via Litterarum e Editus/UESC. Ilhéus -2007.
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