1 de noviembre de 2010

A Navalha Cega

Sobre a mesa está ela, seu brilho se fora junto a tantos destinos consigo cruzados.
Um homem dorme sobre um leito, sonha um sonho (sabe-se lá qual) como qualquer homem.
Uma navalha ociosa... Quem a deixara ali?
O homem coberto pela vasta sombra ressona... seus sonhos o movem na cama, suas mãos crispadas suam , quando possesso, a navalha impunha...
Gotas de sangue pintam as paredes, mancham a poltrona do carro... água e sabão retiram os rastros.
O homem desperto já não se lembra, é hora da ceia e a navalha está cega na mesa.



Ivana Oliveira

A VELHA MERCÊS

– Tá fazendo-se besta?! Tá fazendo-se besta?! – e cada vez que ela gritava essa frase, dava duas batidas no chão com o calcanhar direito como se fosse algum ritual macabro. Chegava a retumbar o chão da casa. Durante certa fase da minha infância, eu morria de medo daquela senhora misteriosa que possuía um corpo esquelético, meio corcunda, cabelos sempre cobertos por um lenço encardido e aqueles olhos foscos...

Sempre com seu cachimbo na boca, saía à rua apenas pra comprar algum mantimento ou erva pra fumar. Alguns desocupados que tomavam cachaça na mercearia soltavam alguma graça de mau-gosto, ao que ela respondia com uma baforada de cachimbo. Quando ia saindo, o dono da mercearia comentava sempre: “Quem era essa criatura! É verdade... as ironias da vida!” – e fazia uma expressão de piedade.

Depois de um tempo, percebi que quando ela danava a bater o calcanhar e gritar, era sinal de que alguém a perturbava. Era um tal de: – Tá fazendo-se besta?! Tá fazendo-se besta?! – que ela cada vez mais repetia com veemência e a molecada saía em disparada, temendo que vô Jão chegasse com o cipó pra dar umas lapadas nas canelas deles.

– Que foi Mercês? Quem buliu com a senhora?

– Esses fio de uma égua, esses cabrunco... – e desandava a dar todo tipo de xingamento aos moleques que costumavam atormentá-la.

– Fizeram o quê?

– Fica tudo aí mangando d’eu, seu Jão, eu aqui no meu canto trabaiando que nem uma condenada e essas peste vem me pertubar! – queixava-se com sua voz rouca.

Pior foi quando dona Mercês começou a gritar durante a madrugada e bater o calcanhar como só ela fazia. Àquela hora não havia nem pé nem cheiro de menino na rua para incomodá-la. Vô andou achando que era ladrão rondando a casa dela, valente que só ele, pegava logo sua espingarda de caça e partia para apurar as queixas.

– Que ladrão qual nada, Jão! Te aquieta e vem dormir, o que é que Mercês tem naquela casa pra alguém roubar? A velha tá é caducando. – tentava minha avó acalmá-lo. Mas, ele só sossegava depois de ir verificar se tinha alguém. Nada de gente pelos arredores e Dona Mercês insistia que tinha um “neguinho preto” insultando-a e que fazia caretas e a chamava de doida. Aos poucos o vô se convenceu de que a velha Mercês tava mesmo caducando.

Eu cansava de acordar com aqueles berros e ficava todo assombrado, nem tinha coragem de ir ao banheiro, mijava na cama mesmo e no dia seguinte botava o colchão ao sol.

Logo, se espalhou um boato de que Mercês tava vendo alma penada, outros diziam que pela descrição era saci. Mas, os mais céticos diziam que ela estava mais louca que nunca.

A pobre morava a duas casas da nossa, vivia num casebre, que só Deus sabe como ela agüentava aquilo sem conforto nem higiene. Eu de tão curioso, perdi o medo e um dia me ofereci para levar castanhas de caju que o vô tinha assado para ela. Era tardezinha, entrei batendo palmas, ela tava de cócoras acendendo o cachimbo no pequeno forno à lenha que havia num canto do único cômodo da casa.

– Dona Mercês?

– Heim? Tu é o neto que seu Jão cria, né, mô fio? – abriu um sorriso e me olhou com ternura.

– Sou sim senhora. Ele mandou umas castanhas.

– Me dê cá. Diga a seu Jão que Deus lhe pague, viu, nego?

Enquanto ela guardava as castanhas numa lata enferrujada, eu revirava a casa com os olhos. Tudo quanto meus sentidos foram capazes de registrar ficou guardado na minha memória para sempre. A humilde casa de taipa cheirando a fumaça, tinha o teto e as paredes revestidos por teias de aranha cheias da fuligem que vinha do forno. O chão era de terra batida. Sanitário não tinha, ela se servia de um buraco no canto do cômodo que estava coberto por uma tábua, num outro canto, ficava o forno, onde bem ao lado, pendurada por um gancho, tinha uma carne do sol coberta de moscas e abaixo um pote de barro com uma caneca de plástico por cima da tampa. Um pouco afastados dali, um baú com um candeeiro em cima, uma bacia com água e a velha cama de varinhas que ela cobrira com um tapete de retalhos, onde repousava das canseiras da vida.

– Dona Mercês?

– Heim? Tu tá aí ainda, fio?

– É.. eu tava aqui pensando... a senhora não tem parente não?

– Ô mô fio, tua vó já deve de tá te percurano, vai-te embora, caminha!

– Ela sabe que eu vim pra cá. – insistia – A senhora não quis casar não?

– Ô diacho de menino perguntador, ói, fio, vai-te embora que eu vou tomar meu bãim, viu? Ali ó, minha água já ta na bacia. – e indicou a bacia de alumínio perto da cama. Dadas as circunstâncias, fui pra casa ainda mais curioso.

Desde então, voltava àquele casebre sempre que tinha alguma coisa a ser entregue à dona. Eu pinotava do pé de manga do quintal, onde costumava brincar e, saía desembestado quando o vô dizia que tinha algo para a velha Mercês. Ela passou a me agradar sempre com umas moedinhas que eu usava pra comprar doces ou bolinhas de gude. “Tome cá umas nica, fio, pra tu comprar argũa coisa pra adoçar a boca”, dizia.

Eu era a curiosidade em forma humana, ela, um cofre de segredos que eu queria descobrir. Toda vez que se falava da velha lá em casa eu ficava de orelha em pé como cão de guarda. Alguma coisa tinha! Minha avó, às vezes brigava com meu avô por alguma coisa relacionada a ela. Eu nem imaginava o que poderia ser.

Uma tarde incerta, avistou-se no arraial uma senhora magra, trajes reluzentes e sapatos de saltos, daqueles que fazem barulho, um barulho oco.

– Mas... não é a dona Mercês?! – uma senhora perguntou e as outras admiradas se aproximaram da velha, toda lustrosa, o vestido bem demodê, é certo, mas, era muito melhor que os trapos que ela usava.

Ela contou às curiosas que ia ao hospital, talvez ficasse internada, ninguém sabia ao certo que doença era aquela. Algumas arriscavam a falar a palavra no ouvido da outra. Umas apenas diziam quase sussurrando: “parece que é CA”. Eu não entendia aquilo que diziam nem tamanho segredo em torno da tal doença. Só sei que daí a uns dias chegou a notícia que D. Mercês tinha operado e tava muito mal. Meu avô, volta e meia, pegava a camionete e ia à cidade para saber notícias, o quadro piorava a cada dia.

Uma semana depois, a enferma saiu da UTI e estava mais lúcida que nunca. A vó, sem rodeios, comentou:

– Não sei não, já vi muitos casos desses, às vezes melhora num dia e no outro Deus chama, é só o tempo de a pessoa pedir perdão dos pecados e se despedir dos seus.

E foi tão certo, bastou o padre dar a extrema unção e ela receber a visita dos conhecidos que a velha Mercês deu o derradeiro suspiro e fechou aqueles olhos que há muito perdera o brilho.

Levaram o corpo para ser velado na igreja e de lá partiria para o cemitério. Não queriam que eu me aproximasse do caixão, mas eu fui... Me lembro que senti tristeza, mas, sem vontade de chorar. Era tudo muito estranho, eu a via conversando, fumando o cachimbo, gritando e batendo o calcanhar no chão pra espantar os moleques e naquele momento, era apenas um corpo inerte. Pra quê aquele algodão no nariz? As velas, as flores, a alfazema, a cantoria das beatas, tudo novo pra mim. Meu avô chorava como se tivesse perdido um ente da família, era um desespero só. Peguei uma flor e depositei perto do braço dela. Olhei seu rosto de novo e pela última vez, tinha uma expressão plácida e parecia haver remoçado com a morte.

Eu nunca descobri o segredo dela, quando tentava conversar sobre isso com meu avô ele tratava de mudar de assunto, ficava com o semblante melancólico.

Só sei que naquela noite, quando me deitei parecia ouvir ao longe sua voz rouca:

– Tá fazendo-se besta?! Tá fazendo-se besta?!
 
 
 
Ivana, 09/08/08